Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Na bagageira viajava uma televisão acabada de comprar na Black Friday. A casa da mãe fica no bairro dos pescadores. Raul, parado nos semáforos, foi assaltado por histórias antigas que ela contava. Ele era filho do comandante Jota “Tubarão”, entregue não por uma cegonha mas por um albatroz. E a coruja que habitava a casa modesta e que caçava ratos melhor que um gato, enquanto ele dormia? Nunca a viu e não acreditava. Hoje, dia de aniversário, a mãe, vestida de negro desde que o mocho piara, sinal de número parnão no céu, assim antevendo a sentença do naufrágio, esperava-o acompanhada do gato que condizia com seu eterno destino.
Tinham combinado uma sopa rica de peixe. A importância do jantar festivo acompanhado por uma garrafa de vinho foi disputada por um documentário sobre aves de rapina na nova TV. Raul bebeu para estancar a náusea dos abutres a limpar carcaças. Não tinha estômago para aquilo. A mãe parecia imune ao nojo. Alimentava um fascínio por rapaces. Tarde, à porta da escuridão, ela perguntou:
– Quando voltas, filho? Daqui a um ano?
Raul iludiu a resposta e acelerou noite dentro.
A criança dormia quando Raul deslizou pelo corredor. A mulher, aconchegada na cama, perguntou por D. Adelina. Que estava bem, disse ele. O gato engordara. E foi ao duche.
Bom dia. Permitam que me apresente: Chernobyl, peixe kinguio japonês. Ganhei o meu nome quando desenvolvi uma enorme bola na cabeça, um tumor. Até aí era simplesmente tratado por “Peixinho”. Hoje, com 13 anos, e 20 cm de comprimento, seria ridículo. Todavia, a única radioactividade a que fui exposto é a música clássica da Antena 2 que o namorado da mulher com quem partilho apartamento põe a tocar ao sábado, mal chega a casa. Nesse dia, a rotina altera-se radicalmente. A voz dele ecoa pelo ar e faz tremer as paredes de vidro do meu aquário. Um vero Parvarotti e um beijoqueiro. A primeira vez que o vi beijá-la pensei que ele a fosse matar. Na loja do shopping, há muito tempo, conheci um peixe-beijador. Guardava respeitosa distância, embora ele fosse agressivo apenas para com os da sua espécie. Afinal o homem é inofensivo, aquilo não era briga, antes preliminar do acasalamento. (Nunca os vi a procriar, nem quero.)
À hora do almoço, ele é um mãos largas com os grânulos, diferente da mulher, sempre com a mania da dieta, uma unhas de fome. Espero em vão por coração de boi, cozido e esmigalhadinho com ervilhas semi-cozidas, levemente amassadas! Anseio por artémias, larvas de mosquito, moscas de fruta! Mas só me dão enlatados industriais. O pior é vê-los à mesa a devorar os meus semelhantes. Inicialmente, atemorizado, até julguei que me destinavam ao estômago. Vi douradas, robalos, sardinhas, e muitos outros, a chegarem ali a fumegar em bandejas metálicas! Sacrilégio! No meu país natal são mais civilizados: comem-nos crus, e até vivos, bem frescos, como deve ser! Não sei que barbárie é esta, mas a cena repete-se duas vezes por dia. Ao jantar até acendem velas na mesa como se tudo aquilo fosse um sacrifício aos deuses.
Chega a noite, novo suplício. Sentam-se abraçados no sofá a ver filmes de terror. Lá por não ter pálpebras, não quer dizer que não durma. De sono leve, a cada grito sobressalto-me, dou meia volta e provoco um tsunami. Ignoram-me. Cada vez se agarram mais um ao outro: deve ser o medo, não? E voltam aos beijos antes de se irem embora dali, apressados, sem sequer saber como a história acaba. A TV fica acesa, a luz ligada. Que desperdício. Resto eu. E que tédio: morreram todos novamente! Que filmes mais previsíveis. Humanos! E dizem-se eles os seres mais evoluídos do planeta. Pff!
(Fuselo - Limosa Lapponica)
“Já chegámos? Já chegámos?” O mundo unido numa redonda pergunta. 384.400 km. A raça humana embarcara, temerária, naquele Saturno esguio. A Águia aterraria em quatro dias, periclitante, no solo lunar.
Alheia à História que se fazia naquela noite, eu viajava no berço dos meus sonhos enquanto na imaginação mundial acordava um universo de possibilidades. Na saleta, os meus pais controlavam o sono a poder de cafés e entusiasmados cigarros, ouvidos atentos à Emissora Nacional, olhos colados na TV a preto e branco. Aproximavam-se as quatro da manhã do dia 21 de Julho de 1969, era ainda a noite de 20 nos Estados Unidos, quando demos um pequeno passo no regolito lunar e nos lançamos no salto gigantesco que um dia, ainda longe, há-de resgatar a humanidade da sua extinção. Fomos em paz e em nome de todos. O mundo unido numa redonda conquista. Nunca fôramos tão grandes.
O educador Charles Morton escreveu no séc. XVII um tratado sobre a migração das aves no qual defendeu que no Inverno elas voavam até à Lua, regressando depois na Primavera. Estimou que a distância a percorrer fosse de 179,712 milhas e que elas demorariam 60 dias a chegar lá a 125 milhas por hora. Se desapareciam da paisagem, para onde poderiam elas ir senão para a Lua?
Vi um fuselo na praia a comer avidamente. Está de passagem. As aves migram desde tempos ancestrais para fugir de ameaças à sua sobrevivência. Regressam ao local de partida, na estação seguinte, para acasalar e cuidar das crias. Os fuselos dispensam qualquer foguetão. Preparam-se para viajar acumulando enormes reservas de gordura: é o combustível. Mais de metade do seu peso é gordura. À medida que engordam, os músculos peitorais e as patas também crescem. Batem as asas durante a maior parte da viagem. Além da força muscular, os fuselos também tiram partido do vento embora não planem. Orientam-se pela sua misteriosa “bússola interna”:tecnologia de ponta. É bem possível que dormitem enquanto voam, quem sabe se não sonharão com uma viagem à Lua!
Em 2007, um fuselo fêmea, uma ave com apenas 40 cm de comprimento e 80 de envergadura, percorreu 11.570 km, um voo de 8 dias, sem escalas. Partiu de um estuário no Alasca e alcançou a costa da Nova Zelândia, uma distância equivalente a ¼ da circunferência da Terra.
Da próxima vez que olharmos a Lua, se nos sentirmos grandes, lembremo-nos do fuselo.
Tema da semana: Já chegámos? Já chegámos?
(Gaivota - Larus fuscus)
No Verão anterior, Simão, 14 anos bem encorpados, acompanhara a primita Lúcia ao Casino para receber um jogo da Majora que ela tinha ganho no concurso. Neste, apostara com ela que ficaria em 1º lugar. Nunca supus ser a sereia que um dia o mar depositara nos braços daquele beirão moreno e de olhos pestanudos, quando, de férias na praia da Claridade, anos 60, as nossas famílias, a banhos, se conheceram. Mais novo, marinheiro de água doce no amor, a voz embargava-se-lhe quando me dirigia a breve palavra, o que eu tomava por juvenil timidez.
E foi assim que acordei nua e só numa ilha deserta sem me lembrar de nada. Simão, ajoelhado, transpirava ao sol, a cabeça protegida por um boné, o tronco nu curvado. Movimentando os braços e mãos num afã amoroso, penteava os cabelos longos com os dedos, enfeitava-me o peito de conchas e búzios, acariciando cada curva com enlevo. O júri avisou bem alto o termo do tempo. Ele sentou-se junto a mim, deleitado. Quis erguer a mão para festejar os seus caracóis negros e foi quase trágico. O antebraço desfez-se no ar. Sobravam breves minutos para Simão recompor a construção de areia.
Uma moldura humana rodeava o recinto, pais, mães e curiosos, ansiando a coroação dos pequenos grandes artistas. O júri atravessou vagarosamente o areal construindo castelos no ar com palavras de apreciação. Porém, à vista daquela ousada nudez, apenas questionaram:
– Nº 23, menino Simão Tavares, “Mulher nua numa ilha deserta”, certo?
Não, não. Aquela era Isabel, a sua paixão, que, filas adiante, apoiava a prima Lúcia, Nº 7. Chamara-a insistentemente com o olhar mas ela apenas se chegou ali já o concurso acabado:
– Tenho tanta pena que não tenhas ganho. Já pensaste um dia ser escultor?
As palavras dela souberam-lhe a tão pouco que foi dar um mergulho. Deixou a água do mar temperar-lhe o corpo e o espírito por longa hora. Quando voltou a multidão tinha dispersado e ele deitou-se ao lado da solitária escultura. Já muito tarde, o sol anunciando a retirada, o pai veio por ele, mas Simão recusou abandonar a sua mulher de sonho. Adormeceu ali. Devagar uma onda aproximou-se, e depois outra, e, sem remorsos, arrancaram-lhe aquele amor de areia dos braços. Os seus pensamentos levaram-no até casa, onde chegou, com fome e a tremer de frio, mas de coração lavado. Aquilo que o mar dá, o mar leva.
Tema da semana: Acordaste nua, sem te recordares de nada, numa ilha deserta
Acabo de descobrir que uma postagem minha, juntamente com estas, destes blogues, faz parte dos Destaques do Sapo para o corrente dia. Uma enorme surpresa para tão novel batráquia!
Aqui fica o meu agradecimento e uma música bem boa para todos os Sapinhos, porque:
"We're on this Earth to have some fun."
(Poupa - Upupa epops)
Estávamos as duas sentadas frente ao mar, eu e a folha branca de papel. Ansiosa sem saber. Macia. Pura. Original. À espera do risco que lhe ia acontecer.
Era uma vez uma maçã talvez. E um traço. E outro. Um telhado? E um ovo deitado. Dois gomos de laranja, mais um triângulo bem afiado. Duas linhas de pé.
– O que é?
– Um pássaro.
– E voa?
– É pequeno ainda!
– Deixa-o tentar...
– E se cai da folha e fica magoado? E se tomba ao chão e deixa de cantar? E se morre de desgosto por não saber voar?
– Amanhã, então.
– Ajudas-me?
–Tens de ser tu.
Grande é a vontade de voar! Toca a recomeçar. Cabeça e coração alinhados no lugar. Mas aquela mão desobediente, sem mãe nem pai nem Deus que a oriente. Uma. Duas. Três, toca a riscar. Ai Mão-Cega, ai que jogo mais difícil de jogar! Quatro, cinco, seis, vai de apagar. Rasga-se a folha infernal. Voa a bola de papel amassado em vez. Faz ninho do cesto onde pousou. E o pássaro que havia de ser? Hibernou.
Eis o Inverno já passado. A Primavera a passear. Já corre de novo o risco.
Revisão: A de Asas. B de Bico. C de Cabeça. D de Desafio...
– Mãe, quem desenhou a linha do tempo? Como posso apagar um mau momento?
– Porque não vais brincar?
– Depois...
Cresce um dia igual aos outros de uma semana habitual. A folha de papel levanta voo finalmente. Tímida, primeiro. Quase um segredo para se guardar. Depois, aberta de par em par.
– Olha, mãe!
O pássaro subiu, subiu até ao sol e desceu até ao mar.
– O que foi que lhe deu? Caiu? Morreu? Não aguentou sonhar?
– Não sei, meu amor. Não sei.
– Que mal fiz eu? A cabeça. O bico. Um corpo de pássaro. Um par de asas. A cauda. Duas patas e pernas na perpendicular. Estava tudo no seu lugar. NÃO QUERO MAIS DESENHAR.
– Não chores. O momento ideal há-de chegar. Olha, amor, lá longe!
– Onde? Onde?
– Ali. No futuro!
Um V de Vontade fugia pelo canto da folha azul sem nuvens, em breve apenas um ponto preto no horizonte. Estava vivo o pássaro afinal!
– Onde está ele agora, mãe?
– Na tua Imaginação.
Estávamos as duas sentadas junto ao mar, eu e a criança que fui. E então desenhei-lhe esta carta na areia e assinei com G de Gratidão.
Figueira da Foz, 1 de Junho
Tema da semana: Escreve uma carta para a criança que foste
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.