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(Ganso das neves - Anser caerulescens)
Srª. Rudolfo. Venho por esta via reclamar do resultado do concurso de recrutamento e selecção para a posição de Pai Natal que teve lugar online. Tomei conhecimento de que fui preterida em virtude do meu sexo. A legislação laboral nacional e internacional está do meu lado. O que a srª. fez foi descaradamente discriminatório! A srª. é um animal que não sabe reconhecer o que é talento. Já me informei junto da Autoridade para as Condições de Trabalho e irá ser notificada em breve. Ser assim tratada por uma rena que foi gozada pelas suas congéneres por ter um nariz diferente só prova que o poder cega mais que o nevoeiro na noite. Já se esqueceu como foi escolhida pelo Pai Natal para ser a 9ª rena do trenó? Por causa da sua luz! Porque assim se evitavam atrasos e acidentes!Também eu sei que posso fazer a diferença como o Pai Natal do séc. XXI: tenho muita luz para oferecer. Prepare-se para provar que não houve preferência de tratamento do candidato seleccionado só porque ele tem uma pila. Isto vai ser o fim da sua história radiosa, sua bola de pelo cruzada com um semáforo de trânsito! Pedirei uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais pela afronta sexista e exigências absurdas: uma fotografia de rosto, outra de corpo inteiro e cinco cartas de recomendação? Horas para conseguir preencher o curriculum vitae no formulário online do site oficial! E os dois dias que passei no Centro Médico para tratar do atestado de robustez física e psicológica? E as longas semanas a estudar geografia mundial, a santa história de S. Nicolau, a vida no árctico, a biologia dos cervídeos? A srª. sabia que a sua espécie se encontra ameaçada de extinção? E a lista interminável de catálogos de brinquedos infantis que tive de decorar? E o curso intensivo obrigatório dos 50 idiomas básicos para ler cartas das crianças e conversar com elas? Mais a formação, paga por mim, em psicologia infantil que tive de frequentar! E depois disto tudo, uma entrevista relâmpago online onde me pergunta qual é o meu maior defeito?! Tenho brevet de voo e disponibilidade para viajar para a Lapónia amanhã. Ainda podemos resolver isto sem recurso ao tribunal. Já não bastava toda uma história de opressão patriarcal, agora, em pleno séc. XXI, inaugurar-se a história da opressão renal é muito má publicidade para o Natal, srª. Rudolfo!
Tema da semana: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo.
(Pica Pau - Dendrocopos major )
Miss Parker, corpo negro, macio ao toque, adornado a ouro, possuía uma beleza intemporal. Fria e distante, ainda assim, HB admirava-a. Ela gabava-se frequentemente da sua rica história. Que descendia de linhagem importante. Quando a rendição alemã foi assinada, estavam lá. Tinham lugar em museus. Hemingway dizia-se inspirado por uma quando escrevera um livro. Privavam com os membros da família real britânica. Eram disputadas por coleccionadores. Já HB tinha um jeito modesto embora ambicioso. As suas origens perdiam-se no tempo, talvez um escriba egípcio que raspara com um estilete num papiro. Não nasci para isto, queria sempre dizer-lhe quando a via olhá-lo com desdém. Mas seria inútil. Ela estava-se nas tintas para ele.
Miss Parker recolhia-se a um estojo de veludo nas horas vagas. Ele dormia em pé, misturado com outros num copo de estanho, numa promiscuidade colorida. Enquanto ela era chamada a escrever cartas de amor, a ele cabia listar as compras da mercearia, fazer maçadoras contas, e, ocasionalmente, esboços em folhas brancas que acabavam no lixo. Durante estes devaneios criativos HB temia pelo seu corpo que via encurtar-se a olhos vistos. Alto e esguio, aproximava-se rapidamente da altura de Miss Parker. Mas nem assim poderia considerar falar-lhe de igual para igual. Também a cada queda o seu coração de grafite se partia um pouco. E mais vezes era aparado. A sua esperança de vida reduzia-se a cada volta. Uma doce tontura sempre anestesiava o corte da lâmina mas não a sensação do tempo a fugir-lhe. Não nasci para isto. Eu sei, eu sinto no mais íntimo da minha negritude, que há algo maior. Todavia, o seu momento não chegava.
Um dia a criança que corria pela casa foi ao escritório e o pai deu-lhe aquele lápis. Foi com ele que começou a ensaiar o a,b,c num caderno de duas linhas. O HB passou a dormir num estojo com a divertida Miss Bic Cristal. Transparente, despretensiosa, ainda que por dentro dela corresse sangue azul, a química entre os dois foi imediata. Viram, orgulhosos, as primeiras palavras escritas pela miúda feliz. Depois, na escola, Miss Bic Cristal escreveu-lhe a primeira redacção e ele fez-lhe uma última ilustração. A professora classificou com Muito Bom.
Hoje o velho estojo escolar, a esferográfica vazia e um lápis HB de 4 cm fazem parte do museu pessoal da minha infância. Da caneta Parker 51, possivelmente adormecida em alguma loja de antiguidades, perdeu-se o rasto.
Tema da semana: Não nasci para isto
Batalha final. Três homens avançam apressados. São interceptados pelo Homem Formiga.
HOMEM FORMIGA
(surpreendido)
Sr. Scorsese?!
SCORSESE
(olhando em volta)
Deve estar a confundir-me com alguém.
HOMEM FORMIGA
E tu, baixote? Quem és? Tens um ar engraçado!
TOMMY
(irritado)
Engraçado? Engraçado como? Como um palhaço? Divirto-te? É?
SCORSESE
Deixa-o, Tommy. Não estamos no Bamboo Lounge.
Homem Formiga
(examinando Bill the Butcher)
Chapéu alto, amigo?! Algum casamento hoje?
BILL THE BUTCHER
Amigo? A que gangue pertences tu? Pelas antigas leis do combate nos juntámos neste chão sagrado para resolver para sempre quem governará os Cinco Pontos.
HOMEM FORMIGA
Cinco Pontos? As Jóias do Infinito, queres tu dizer. Não são cinco, idiota, são seis.
BILL THE BUTCHER
(irado)
Idiota és tu. Cada um dos Cinco Pontos é um dedo. Se fechar a minha mão ela torna-se um punho. E se me apetecer, posso dar-te um murro.
Scorsese
(Interpondo-se entre ambos)
Pára, Butcher. Temos mais que fazer. Vamos.
HOMEM FORMIGA
(para Scorsese)
Gostava mesmo de um autógrafo seu mas estou atrasado. Cuide-se!
Levanta voo.
Os três caminham de novo.Scorsese guia-os.
TOMMY
Ainda não entendi que guerra é esta...
SCORSESE
Uma que temos de vencer. Trouxeste-o?
TOMMY
Sim, está no meu bolso.
Bate com a mão direita no peito.
SCORSESE
(para Butcher)
E tu?
Ergue a mão que segura um cutelo.
SCORSESE
Isto é um parque de diversões, Tommy.
TOMMY
De que falas?
SCORSESE
Deste universo cinematográfico em que nos encontramos. Cheira a estagnação. Não sentes?
TOMMY
Chefe, eu estou morto. Não sinto lá grande coisa.
SCORSESE
A arte está morta. Mas nós vamos resolver isso.
Interrompem a marcha. Scorsese aponta Thanos e o Homem de Ferro que lutam.
SCORSESE
São eles.
TOMMY
Chefe, a quem aplico a solução que dei ao Morrie? Ao grandalhão?
SCORSESE
Ao “baixote”.
Tommy sorri.
O Homem de Ferro está de joelhos no solo. Tommy aproxima-se por trás. Agarra-o pela testa.Espeta-lha o picador de gelo na nuca. Ele cai por terra.
SCORSESE
(para Bill)
Corta, Butcher.
Bill atira o cutelo ao ar. Ele dá voltas e cai,cortando o braço do Homem de Ferro.
Scorsese agarra o antebraço com as Jóias do Infinito.Ergue-o acima da cabeça.
SCORSESE
Hoje o reinado da Marvel será apagado para sempre. Em nome da arte.
Desaparece.
SCORSESE transpõe a 4ª parede.
SCORSESE
(para o público)
Thanos sabia: enquanto existirem os que se lembram como foi, não aceitaremos o que poderá ser.
Estala os dedos.
CORTA.
Tema da semana: Reescreve o final de um filme
Filme escolhido: Endgame (2019), trailer, aqui
As personagens dos filmes de Scorsese:
Tommy DeVitto em Goodfellas
Bill the Butcher em Gangues de Nova Iorque
Martin Scorsese: “I don’t see them. I tried, you know? But that’s not cinema. Honestly, the closest I can think of them, as well made as they are, with actors doing the best they can under the circumstances, is theme parks. It isn’t the cinema of human beings trying to convey emotional, psychological experiences to another human being.”
Entrevista na Empire Magazine, Outubro 2019
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