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Na bagageira viajava uma televisão acabada de comprar na Black Friday. A casa da mãe fica no bairro dos pescadores. Raul, parado nos semáforos, foi assaltado por histórias antigas que ela contava. Ele era  filho do comandante Jota “Tubarão”, entregue não por uma cegonha mas por um albatroz. E a coruja que habitava a casa modesta e que caçava ratos melhor que um gato, enquanto ele dormia? Nunca a viu e não acreditava. Hoje, dia de aniversário, a mãe, vestida de negro desde que o mocho piara, sinal de número parnão no céu, assim antevendo a sentença do naufrágio, esperava-o acompanhada do gato que condizia com seu eterno destino.

Tinham combinado uma sopa rica de peixe. A importância do jantar festivo acompanhado por uma garrafa de vinho foi disputada por um documentário sobre aves de rapina na nova TV. Raul bebeu para estancar a náusea dos abutres a limpar carcaças. Não tinha estômago para aquilo. A mãe parecia imune ao nojo. Alimentava um fascínio por rapaces. Tarde, à porta da escuridão, ela perguntou:

– Quando voltas, filho? Daqui a um ano?

Raul iludiu a resposta e acelerou noite dentro.

A criança dormia quando Raul deslizou pelo corredor. A mulher, aconchegada na cama, perguntou por D. Adelina. Que estava bem, disse ele. O gato engordara. E foi ao duche.

Morto de cansaço, fechou a luz e apagou-se no edredão.

O telemóvel acordou-o cedo. A mãe. A televisão. Um problema. Raul, que já tinha combinado reunir com o sócio do restaurante naquela tarde, sossegou-a. Iria.

Ao final do dia, a carrinha do INEM parada à porta da vivenda isolada sobressaltou-o. Cruzou-se com um médico no passeio que logo o esclareceu: ataque de pânico. Talvez um sinal de demência. Seria bom despistar. Raul correu. A mãe não o deixou falar:

– Leva-a daqui! Aqueles pássaros não se calam! – disse, apontando o ecrã. – Não me saem da cabeça!

A mulher preparava o jantar quando ele chegou com a televisão ao colo:

–Então…?!

– Está maluca. Vou devolvê-la.

– Dá-a ao Miguel.

O dia seguinte foi de festa para o filho. Mas, noite adiantada, a criança entrou no quarto dos pais, queixosa:

– Aqueles pássaros não se calam. Não consigo dormir. Posso ficar?

Raul agarrou na almofada e foi para o quarto do infante. Sono espantado, ligou a televisão.

Manhã dentro o telemóvel tocou. O sócio queria saber o porquê do atraso de Raul.

– Pá, aqueles pássaros não se calam.



Tema da semana: Aqueles pássaros não se calam.

publicado às 15:00

Beijador (Helostoma temminckii)
 

Bom dia. Permitam que me apresente: Chernobyl, peixe kinguio japonês. Ganhei o meu nome quando desenvolvi uma enorme bola na cabeça, um tumor. Até aí era simplesmente tratado por “Peixinho”. Hoje, com 13 anos, e 20 cm de comprimento, seria ridículo. Todavia, a única radioactividade a que fui exposto é a música clássica da Antena 2 que o namorado da mulher com quem partilho apartamento põe a tocar ao sábado, mal chega a casa. Nesse dia, a rotina altera-se radicalmente. A voz dele ecoa pelo ar e faz tremer as paredes de vidro do meu aquário. Um vero Parvarotti e um beijoqueiro. A primeira vez que o vi beijá-la pensei que ele a fosse matar. Na loja do shopping, há muito tempo, conheci um peixe-beijador. Guardava respeitosa distância, embora ele fosse agressivo apenas para com os da sua espécie. Afinal o homem é inofensivo, aquilo não era briga, antes preliminar do acasalamento. (Nunca os vi a procriar, nem quero.)

À hora do almoço, ele é um mãos largas com os grânulos, diferente da mulher, sempre com a mania da dieta, uma unhas de fome. Espero em vão por coração de boi, cozido e esmigalhadinho com ervilhas semi-cozidas, levemente amassadas! Anseio por artémias, larvas de mosquito, moscas de fruta! Mas só me dão enlatados industriais. O pior é vê-los à mesa a devorar os meus semelhantes. Inicialmente, atemorizado, até julguei que me destinavam ao estômago. Vi douradas, robalos, sardinhas, e muitos outros, a chegarem ali a fumegar em bandejas metálicas! Sacrilégio! No meu país natal são mais civilizados: comem-nos crus, e até vivos, bem frescos, como deve ser! Não sei que barbárie é esta, mas a cena repete-se duas vezes por dia. Ao jantar até acendem velas na mesa como se tudo aquilo fosse um sacrifício aos deuses.

Chega a noite, novo suplício. Sentam-se abraçados no sofá a ver filmes de terror. Lá por não ter pálpebras, não quer dizer que não durma. De sono leve, a cada grito sobressalto-me, dou meia volta e provoco um tsunami. Ignoram-me. Cada vez se agarram mais um ao outro: deve ser o medo, não? E voltam aos beijos antes de se irem embora dali, apressados, sem sequer saber como a história acaba. A TV fica acesa, a luz ligada. Que desperdício. Resto eu. E que tédio: morreram todos novamente! Que filmes mais previsíveis. Humanos! E dizem-se eles os seres mais evoluídos do planeta. Pff!

 

Tema: Um dia na tua família… do ponto de vista do teu animal de estimação.

publicado às 15:00

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(Fuselo - Limosa Lapponica)

“Já chegámos? Já chegámos?” O mundo unido numa redonda pergunta. 384.400 km. A raça humana embarcara, temerária, naquele Saturno esguio. A Águia aterraria em quatro dias, periclitante, no solo lunar.

Alheia à História que se fazia naquela noite, eu viajava no berço dos meus sonhos enquanto na imaginação mundial acordava um universo de possibilidades. Na saleta, os meus pais controlavam o sono a poder de cafés e entusiasmados cigarros, ouvidos atentos à Emissora Nacional, olhos colados na TV a preto e branco. Aproximavam-se as quatro da manhã do dia 21 de Julho de 1969, era ainda a noite de 20 nos Estados Unidos, quando demos um pequeno passo no regolito lunar e nos lançamos no salto gigantesco que um dia, ainda longe, há-de resgatar a humanidade da sua extinção. Fomos em paz e em nome de todos. O mundo unido numa redonda conquista. Nunca fôramos tão grandes.

O educador Charles Morton escreveu no séc. XVII um tratado sobre a migração das aves no qual defendeu que no Inverno elas voavam até à Lua, regressando depois na Primavera. Estimou que a distância a percorrer fosse de 179,712 milhas e que elas demorariam 60 dias a chegar lá a 125 milhas por hora. Se desapareciam da paisagem, para onde poderiam elas ir senão para a Lua?

Vi um fuselo na praia a comer avidamente. Está de passagem. As aves migram desde tempos ancestrais para fugir de ameaças à sua sobrevivência. Regressam ao local de partida, na estação seguinte, para acasalar e cuidar das crias. Os fuselos dispensam qualquer foguetão. Preparam-se para viajar acumulando enormes reservas de gordura: é o combustível. Mais de metade do seu peso é gordura. À medida que engordam, os músculos peitorais e as patas também crescem. Batem as asas durante a maior parte da viagem. Além da força muscular, os fuselos também tiram partido do vento embora não planem. Orientam-se pela sua misteriosa “bússola interna”:tecnologia de ponta. É bem possível que dormitem enquanto voam, quem sabe se não sonharão com uma viagem à Lua!

Em 2007, um fuselo fêmea, uma ave com apenas 40 cm de comprimento e 80 de envergadura, percorreu 11.570 km, um voo de 8 dias, sem escalas. Partiu de um estuário no Alasca e alcançou a costa da Nova Zelândia, uma distância equivalente a ¼ da circunferência da Terra.

Da próxima vez que olharmos a Lua, se nos sentirmos grandes, lembremo-nos do fuselo.

Tema da semana: Já chegámos? Já chegámos?

publicado às 15:00

 

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(Gaivota - Larus fuscus)

No Verão anterior, Simão, 14 anos bem encorpados, acompanhara a primita Lúcia ao Casino para receber um jogo da Majora que ela tinha ganho no concurso. Neste, apostara com ela que ficaria em 1º lugar. Nunca supus ser a sereia que um dia o mar depositara nos braços daquele beirão moreno e de olhos pestanudos, quando, de férias na praia da Claridade, anos 60, as nossas famílias, a banhos, se conheceram. Mais novo, marinheiro de água doce no amor, a voz embargava-se-lhe quando me dirigia a breve palavra, o que eu tomava por juvenil timidez.

E foi assim que acordei nua e só numa ilha deserta sem me lembrar de nada. Simão, ajoelhado, transpirava ao sol, a cabeça protegida por um boné, o tronco nu curvado. Movimentando os braços e mãos num afã amoroso, penteava os cabelos longos com os dedos, enfeitava-me o peito de conchas e búzios, acariciando cada curva com enlevo. O júri avisou bem alto o termo do tempo. Ele sentou-se junto a mim, deleitado. Quis erguer a mão para festejar os seus caracóis negros e foi quase trágico. O antebraço desfez-se no ar. Sobravam breves minutos para Simão recompor a construção de areia.

Uma moldura humana rodeava o recinto, pais, mães e curiosos, ansiando a coroação dos pequenos grandes artistas. O júri atravessou vagarosamente o areal construindo castelos no ar com palavras de apreciação. Porém, à vista daquela ousada nudez, apenas questionaram:

– Nº 23, menino Simão Tavares, “Mulher nua numa ilha deserta”, certo?

Não, não. Aquela era Isabel, a sua paixão, que, filas adiante, apoiava a prima Lúcia, Nº 7. Chamara-a insistentemente com o olhar mas ela apenas se chegou ali já o concurso acabado:

– Tenho tanta pena que não tenhas ganho. Já pensaste um dia ser escultor?

As palavras dela souberam-lhe a tão pouco que foi dar um mergulho. Deixou a água do mar temperar-lhe o corpo e o espírito por longa hora. Quando voltou a multidão tinha dispersado e ele deitou-se ao lado da solitária escultura. Já muito tarde, o sol anunciando a retirada, o pai veio por ele, mas Simão recusou abandonar a sua mulher de sonho. Adormeceu ali. Devagar uma onda aproximou-se, e depois outra, e, sem remorsos, arrancaram-lhe aquele amor de areia dos braços. Os seus pensamentos levaram-no até casa, onde chegou, com fome e a tremer de frio, mas de coração lavado. Aquilo que o mar dá, o mar leva.

 

Tema da semana: Acordaste nua, sem te recordares de nada, numa ilha deserta

publicado às 15:00

Destaque no Sapo!

por Belinha Fernandes, em 01.11.19

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Acabo de descobrir que uma postagem minha, juntamente com estas, destes blogues, faz parte dos Destaques do Sapo para o corrente dia. Uma enorme surpresa para tão novel batráquia!

Aqui fica o meu agradecimento e uma música bem boa para todos os Sapinhos, porque: 

"We're on this Earth to have some fun."

 

 

publicado às 21:58

 

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(Poupa - Upupa epops)

Estávamos as duas sentadas frente ao mar, eu e a folha branca de papel. Ansiosa sem saber. Macia. Pura. Original. À espera do risco que lhe ia acontecer.

Era uma vez uma maçã talvez. E um traço. E outro. Um telhado? E um ovo deitado. Dois gomos de laranja, mais um triângulo bem afiado. Duas linhas de pé.

– O que é?

– Um pássaro.

– E voa?

– É pequeno ainda!

– Deixa-o tentar...

– E se cai da folha e fica magoado? E se tomba ao chão e deixa de cantar? E se morre de desgosto por não saber voar?

– Amanhã, então.

– Ajudas-me?

–Tens de ser tu.

Grande é a vontade de voar! Toca a recomeçar. Cabeça e coração alinhados no lugar. Mas aquela mão desobediente, sem mãe nem pai nem Deus que a oriente. Uma. Duas. Três, toca a riscar. Ai Mão-Cega, ai que jogo mais difícil de jogar! Quatro, cinco, seis, vai de apagar. Rasga-se a folha infernal. Voa a bola de papel amassado em vez. Faz ninho do cesto onde pousou. E o pássaro que havia de ser? Hibernou.

Eis o Inverno já passado. A Primavera a passear. Já corre de novo o risco.

Revisão: A de Asas. B de Bico. C de Cabeça. D de Desafio...

– Mãe, quem desenhou a linha do tempo? Como posso apagar um mau momento?

– Porque não vais brincar?

– Depois...

Cresce um dia igual aos outros de uma semana habitual. A folha de papel levanta voo finalmente. Tímida, primeiro. Quase um segredo para se guardar. Depois, aberta de par em par.

– Olha, mãe!

O pássaro subiu, subiu até ao sol e desceu até ao mar.

– O que foi que lhe deu? Caiu? Morreu? Não aguentou sonhar?

– Não sei, meu amor. Não sei.

– Que mal fiz eu? A cabeça. O bico. Um corpo de pássaro. Um par de asas. A cauda. Duas patas e pernas na perpendicular. Estava tudo no seu lugar. NÃO QUERO MAIS DESENHAR.

– Não chores. O momento ideal há-de chegar. Olha, amor, lá longe!

– Onde? Onde?

– Ali. No futuro!

Um V de Vontade fugia pelo canto da folha azul sem nuvens, em breve apenas um ponto preto no horizonte. Estava vivo o pássaro afinal!

– Onde está ele agora, mãe?

– Na tua Imaginação.

Estávamos as duas sentadas junto ao mar, eu e a criança que fui. E então desenhei-lhe esta carta na areia e assinei com G de Gratidão.

 

Figueira da Foz, 1 de Junho

Tema da semana: Escreve uma carta para a criança que foste

publicado às 15:00

 

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(Rola Rola-brava- Streptopelia turtur)

Constança, uma fulva trintona, foi comprar uma máscara capilar hidratante. Joana colocou sobre o balcão um frasco de compota de abóbora biológica com amêndoa. – Está em promoção, – disse. O patrão queria livrar-se daquele stock quase no fim da validade. Constança recusou: não precisava. – Ora – continuou a empregada – precisa, sim. É adoçada com stevia. A abóbora é rica em vitaminas A,C e E, e potássio, além de ter propriedades antioxidantes. Nutre e retarda o envelhecimento do cabelo. E protege dos danos do sol. Aplica após a lavagem, faz uma pose de 3 minutos e enquanto espera faz esfoliação corporal graças à amêndoa de Foz Côa. E para evitar o desperdício chama a sua amante para lamber o seu doce e goza um orgasmo extra. É 3 em 1!

Constança, vegetariana, cliente habitual da única loja vegana do bairro, achou que Joana tinha andado a fumar erva mais poderosa que o habitual tabaco. Ainda que nova ali, costumava esticar-se na oratória, mas nunca como desta vez. Constança não fez escândalo. Levou a compota e telefonou ao patrão, seu conhecido. Joana não sofreu repreenda nem procedimento disciplinar. Uma semana depois o seu contrato não foi renovado. Quando lhe comunicaram o facto, apenas disse, com desprezo:

– Gente que gosta mais dos animais que de pessoas.

Uns meses depois havia corrida e marcaram uma manifestação junto às portas da praça de touros da cidade. Cerca de 100 pessoas e alguns cães fizeram parar o trânsito, sob vigilância da polícia. Constança compareceu com um cartaz contra o sofrimento animal. O seu olhar e o de Joana cruzaram-se. Aproximaram-se e juntas agitaram concertadamente os seus papelões no ar aos gritos de Cultura sim, tortura, não! , até ficarem roucas e quase despenteadas.

– Queres vir tomar um chá quente?

Constança seguiu-a. Pararam no ecoponto para deixar os cartazes. Joana vivia sozinha com cinco gatos num T1. Entraram para a cozinha. Na mesa, alinhados, estavam três frascos de compota de abóbora com amêndoa e pão integral numa cesta. Depressa o chá fumegava histórias. Tinha uma Pós-Graduação em Filosofia Contemporânea. Nunca conseguira dar aulas. Quando a conversa chegou ao fundo da chávena, Joana pegou num dos frascos e desapareceu, seguida pelos cinco gatos. Constança ouviu água a correr. Olhou. Havia vapor no hall. Foi e abriu a porta recortada a luz. Joana massajava compota no corpo. Constança despiu-se com avidez. Quando entrou na banheira, perguntou, timidamente:

– Como adivinhaste?

 

Tema da semana: A Constança precisa duma máscara capilar mas o teu patrão só quer que vendas compotas de abóbora com amêndoa. Convence-a a escolher a compota para usar.

 

publicado às 15:00

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Arara Vermelha (Ara chloropterus) 

– Apresento-vos o Marquês. É Português. Vai ajudar-nos à festa, mais logo – disse Luísa, retornando à cozinha.

Na sala, os convidados acercaram-se dele mas isso não impediu o Marquês de notar uma pequena encantadora, de verde esmeralda, no extremo da mesa. A curva pronunciada da sua cintura parecia esculpida mesmo à medida da mão de um homem.

Luísa trouxe o bolo de aniversário por si confeccionado para Norberto. Como se tivesse adivinhado os pensamentos do Marquês, conduziu-o e ao seu objecto de desejo até à cozinha. Fechou a porta e a luz atrás dos dois.

A luminosidade das velas entretanto acesas na sala a todos envolveu numa atmosfera aconchegante ao redor da mesa.

– Parabéns a você... – começou Luísa, logo seguida dos convidados.

O aniversariante, de cabelo acinzentado curto e denso, cantava, sorrindo:

– Nesta data querida…

De repente...

– Muitas fe-fe...

...voltou ao princípio.

– Parabéns a você…

Todos riram. Sempre brincalhão. Mas quando ele deixou cair na mesa a faca de cortar bolo que segurava, agarrando-se depois à cabeça, parecendo ter dores, Luísa, exclamou:

– É um AVC! Chamem uma ambulância! Acendam a luz.

Luísa empurrou a cadeira de rodas para onde havia espaço. Examinava-o procurando acalmar-se, acalmando-o. A boca ao lado confirmava-se.

Norberto ficara em observação. Era cedo para prever o futuro. Chegada a casa, acompanhada pela incógnita, deitou-se. Ela sabia que eram necessários mais exames para apurar a causa do acidente isquémico. O cansaço venceu-a.

A sede despertou-a pela manhã. Na cozinha lavou e fatiou laranjas e maçãs na tábua. Cortou os morangos maduros. Juntou tudo num jarro, mais uns bagos de uva branca e um gole de licor de laranja.

Abriu o frigorífico. A garrafa de Marquês de Marialva estava colada à de água gaseificada. Aquele par lembrou-a do seu casamento, um ano e meio atrás. Norberto vestido de castanho mel, ela de verde, ele, enorme, ainda que sentado, ela, uma miúda. A jovem enfermeira, que viera a Portugal de férias, despedira-se depois do Brasil para casar com um velho aleijado e sem dinheiro. Morariam num R/C degradado com vista para a fábrica, origem da reforma antecipada do operário por incapacidade. O amor era aquilo. Não trocaria aquela cabana por outro lugar no mundo se era onde ele queria estar.

Acrescentou o espumante e a água com gás. Misturou. Faltava o gelo. Dois copos. Encheu-os.

– À nossa! – disse. Bebeu um a seguir ao outro. E outro. E outro. Até conseguir chorar.

 

Tema da semana: O Amor, uma cabana… e um frigorífico.

publicado às 15:00

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Águia careca ( Haliaeetus leucocephalus)

À minha frente, na fila, o inconfundível Mercedes-Benz 70K Grosser Offener Tourenwagen está parado na portagem da auto-estrada. IA v 148461. O branco da chapa de matrícula daquele sarcófago negro e cromado fere-me a vista. A capota recolhida deixa ver o casal sentado no banco corrido. Apeio-me do meu híbrido batido e passo por eles a coxear a caminho das cabines da portagem. Espreitei pelo canto do olho para confirmar a suspeita. Hitler e Eva conversavam felizes, alheios ao desconcerto de buzinas que soava à sua rectaguarda num cortejo interminável.

- Hou portageiro? Houlá! Hou!...- chamei, acenando a mão para a cabine branca envidraçada. - Ah, portageiro! Não me ouvis? Respondei-me!

Os sinais luminosos da portagem continuam vermelhos quer para a direcção CÉU quer para a direcção INFERNO. À minha esquerda, as muitas faixas da via em sentido inverso estão desertas.

- Hou lá da portagem, hou lá! Que aguardais? - gritei mais alto, esbracejando agora para o vulto na cabine preta.

Não devia estar aqui. Ainda agora faleci num acidente a caminho de Lisboa. Não era suposto assistir primeiro a um filme da minha vida? Eu e aquele parido do demónio, o Hitler, presos num engarrafamento no purgatório?! Que pena estar morta e não poder publicar esta história no Facebook. Ia tornar-se viral! Nah. Ninguém acreditaria.

- Hou da portagem! - berrei de novo para o portageiro, as mãos ao redor da boca que me sabe a álcool e sangue.- Nom percamos mais maré! Aquele deve servir Satanás, pois sempre ele o ajudou, - bradei, apontando Hitler, que, sentado ao volante, afastava da testa a franja de cabelo.

Impaciente, a cabeça dorida, pedi o livro de reclamações. O portageiro desceu da cabine e veio entregar-mo, contrafeito. No meu carro encontro uma oportuna esferográfica caída no tapete. “Exmo. Sr. Deus”, - escrevi. - Houve um erro do sistema. Hitler, de quem já deve ter ouvido falar, não devia estar aqui. O purgatório está engarrafado. As pessoas estão mortinhas por chegar ao destino mas o trânsito parou. O portageiro nada faz. Como entidade superior, peço que interceda para repor a normalidade”.

Não me lembro de tudo o que aconteceu depois. Na via da RESSURREIÇÃO, aberta ao mundo nessa longa noite, vimos os sinais luminosos ficarem verdes. O ruído de milhares de motores em trânsito e buzinas em festa abafou o da nossa fila única.

 

Não ganhei o céu. Nem Hitler.

 

Tema da semana - Estás na fila para o purgatório e Hitler está à tua frente. Ninguém o quer aceitar e a fila não anda. Escreve a tua intervenção para convencer um dos lados a aceitá-lo

 

publicado às 15:00

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Corvo ( Corvus corax)

Dois levaram-na até à mesa quadrada e forçaram-na a sentar na cadeira. À sua frente, sentado noutra, o homem vendado sorria de boca fechada. O Outro, que não mais pararia de andar à volta deles como um cavalo num redondel, acercou-se dela pelas costas e, puxando-a pelo queixo com uma mão, penteou-lhe os cabelos para trás com os dedos da outra, quase carinhosamente.

- Sim ou não, Beatriz?

Silêncio.

- Arménio, continua.

O homem ergueu a mão direita acima da cabeça grande.

- Ouço dizerem que torturamos pessoas. Fico triste. Nós apenas as convencemos a dizer a verdade. Beatriz estremeceu.

- Vamos. As duas mãos sobre a mesa. Dedos bem abertos. Olha, assim, como estrelas do mar. Já falámos disto antes.

Em Beatriz nem os olhos pestanejam.

- Vamos lá, Beatriz. Não me obrigues a usar de novo a força.

Beatriz cumpre. Levanta os braços que lhe pesam toneladas e deslisa-os sobre a superfície de madeira. Então o homem vendado baixa o seu braço sobre a mesa e um estrondo ecoa pela sala mal iluminada. Ela sentiu o choque entrar-lhe pelas mãos. Todos os ossos tremeram dentro de si. O coração queria fugir dela, fugir dali. De novo o impacto. Impossível gritar, respirar já doía que bastasse. Os nós dos dedos alteavam-se-lhe, mas as suas cabeças estavam coladas com medo à superfície da mesa marcada e suja. O enorme martelo imobilizara-se entre o indicador e o polegar.

Um breve alívio.

À pergunta de sempre Beatriz deu a resposta de sempre.

- Ouviste, Arménio? A Beatriz disse que não. E agora?

Arménio sorria como se nem estivesse ali. Limitava-se a erguer o braço telecomandado e a deixá-lo cair pesadamente na mesa, uma e outra vez.

Os Dois vieram buscá-la.

Beatriz sentou-se na cama a chorar. Soprou ar quente nos dedos feridos. Jamais voltaria a conseguir tocar piano como dantes. Adormeceu fetal, de mãos recolhidas nas axilas.

Uma mosca insistente batia na vidraça. O sol nascera. Beatriz culpou-a por ter despertado mais cedo para o horror. O insecto pousou na mesinha de cabeceira. Ela desferiu um golpe que sobretudo a magoou. Daí a pouco os Dois voltaram para levá-la à arena.

- Beatriz. Sou paciente, como já deves saber. É uma pergunta simples. O Arménio só está aqui para te ajudar a lembrar.

O braço no ar. Um baque seco. A lâmina do cutelo aterra bem longe da mão nervosa de Beatriz.

 

Tema da semana:  A Beatriz disse que não. E agora? 

(Publicado a 04/10/19 no blogue Palavras Cruzadas)

 

 

 

 

publicado às 18:27


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