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Corvo ( Corvus corax)
Dois levaram-na até à mesa quadrada e forçaram-na a sentar na cadeira. À sua frente, sentado noutra, o homem vendado sorria de boca fechada. O Outro, que não mais pararia de andar à volta deles como um cavalo num redondel, acercou-se dela pelas costas e, puxando-a pelo queixo com uma mão, penteou-lhe os cabelos para trás com os dedos da outra, quase carinhosamente.
- Sim ou não, Beatriz?
Silêncio.
- Arménio, continua.
O homem ergueu a mão direita acima da cabeça grande.
- Ouço dizerem que torturamos pessoas. Fico triste. Nós apenas as convencemos a dizer a verdade. Beatriz estremeceu.
- Vamos. As duas mãos sobre a mesa. Dedos bem abertos. Olha, assim, como estrelas do mar. Já falámos disto antes.
Em Beatriz nem os olhos pestanejam.
- Vamos lá, Beatriz. Não me obrigues a usar de novo a força.
Beatriz cumpre. Levanta os braços que lhe pesam toneladas e deslisa-os sobre a superfície de madeira. Então o homem vendado baixa o seu braço sobre a mesa e um estrondo ecoa pela sala mal iluminada. Ela sentiu o choque entrar-lhe pelas mãos. Todos os ossos tremeram dentro de si. O coração queria fugir dela, fugir dali. De novo o impacto. Impossível gritar, respirar já doía que bastasse. Os nós dos dedos alteavam-se-lhe, mas as suas cabeças estavam coladas com medo à superfície da mesa marcada e suja. O enorme martelo imobilizara-se entre o indicador e o polegar.
Um breve alívio.
À pergunta de sempre Beatriz deu a resposta de sempre.
- Ouviste, Arménio? A Beatriz disse que não. E agora?
Arménio sorria como se nem estivesse ali. Limitava-se a erguer o braço telecomandado e a deixá-lo cair pesadamente na mesa, uma e outra vez.
Os Dois vieram buscá-la.
Beatriz sentou-se na cama a chorar. Soprou ar quente nos dedos feridos. Jamais voltaria a conseguir tocar piano como dantes. Adormeceu fetal, de mãos recolhidas nas axilas.
Uma mosca insistente batia na vidraça. O sol nascera. Beatriz culpou-a por ter despertado mais cedo para o horror. O insecto pousou na mesinha de cabeceira. Ela desferiu um golpe que sobretudo a magoou. Daí a pouco os Dois voltaram para levá-la à arena.
- Beatriz. Sou paciente, como já deves saber. É uma pergunta simples. O Arménio só está aqui para te ajudar a lembrar.
O braço no ar. Um baque seco. A lâmina do cutelo aterra bem longe da mão nervosa de Beatriz.
Tema da semana: A Beatriz disse que não. E agora?
(Publicado a 04/10/19 no blogue Palavras Cruzadas)
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