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Águia careca ( Haliaeetus leucocephalus)
À minha frente, na fila, o inconfundível Mercedes-Benz 70K Grosser Offener Tourenwagen está parado na portagem da auto-estrada. IA v 148461. O branco da chapa de matrícula daquele sarcófago negro e cromado fere-me a vista. A capota recolhida deixa ver o casal sentado no banco corrido. Apeio-me do meu híbrido batido e passo por eles a coxear a caminho das cabines da portagem. Espreitei pelo canto do olho para confirmar a suspeita. Hitler e Eva conversavam felizes, alheios ao desconcerto de buzinas que soava à sua rectaguarda num cortejo interminável.
- Hou portageiro? Houlá! Hou!...- chamei, acenando a mão para a cabine branca envidraçada. - Ah, portageiro! Não me ouvis? Respondei-me!
Os sinais luminosos da portagem continuam vermelhos quer para a direcção CÉU quer para a direcção INFERNO. À minha esquerda, as muitas faixas da via em sentido inverso estão desertas.
- Hou lá da portagem, hou lá! Que aguardais? - gritei mais alto, esbracejando agora para o vulto na cabine preta.
Não devia estar aqui. Ainda agora faleci num acidente a caminho de Lisboa. Não era suposto assistir primeiro a um filme da minha vida? Eu e aquele parido do demónio, o Hitler, presos num engarrafamento no purgatório?! Que pena estar morta e não poder publicar esta história no Facebook. Ia tornar-se viral! Nah. Ninguém acreditaria.
- Hou da portagem! - berrei de novo para o portageiro, as mãos ao redor da boca que me sabe a álcool e sangue.- Nom percamos mais maré! Aquele deve servir Satanás, pois sempre ele o ajudou, - bradei, apontando Hitler, que, sentado ao volante, afastava da testa a franja de cabelo.
Impaciente, a cabeça dorida, pedi o livro de reclamações. O portageiro desceu da cabine e veio entregar-mo, contrafeito. No meu carro encontro uma oportuna esferográfica caída no tapete. “Exmo. Sr. Deus”, - escrevi. - Houve um erro do sistema. Hitler, de quem já deve ter ouvido falar, não devia estar aqui. O purgatório está engarrafado. As pessoas estão mortinhas por chegar ao destino mas o trânsito parou. O portageiro nada faz. Como entidade superior, peço que interceda para repor a normalidade”.
Não me lembro de tudo o que aconteceu depois. Na via da RESSURREIÇÃO, aberta ao mundo nessa longa noite, vimos os sinais luminosos ficarem verdes. O ruído de milhares de motores em trânsito e buzinas em festa abafou o da nossa fila única.
Não ganhei o céu. Nem Hitler.
Tema da semana - Estás na fila para o purgatório e Hitler está à tua frente. Ninguém o quer aceitar e a fila não anda. Escreve a tua intervenção para convencer um dos lados a aceitá-lo
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