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(Poupa - Upupa epops)
Estávamos as duas sentadas frente ao mar, eu e a folha branca de papel. Ansiosa sem saber. Macia. Pura. Original. À espera do risco que lhe ia acontecer.
Era uma vez uma maçã talvez. E um traço. E outro. Um telhado? E um ovo deitado. Dois gomos de laranja, mais um triângulo bem afiado. Duas linhas de pé.
– O que é?
– Um pássaro.
– E voa?
– É pequeno ainda!
– Deixa-o tentar...
– E se cai da folha e fica magoado? E se tomba ao chão e deixa de cantar? E se morre de desgosto por não saber voar?
– Amanhã, então.
– Ajudas-me?
–Tens de ser tu.
Grande é a vontade de voar! Toca a recomeçar. Cabeça e coração alinhados no lugar. Mas aquela mão desobediente, sem mãe nem pai nem Deus que a oriente. Uma. Duas. Três, toca a riscar. Ai Mão-Cega, ai que jogo mais difícil de jogar! Quatro, cinco, seis, vai de apagar. Rasga-se a folha infernal. Voa a bola de papel amassado em vez. Faz ninho do cesto onde pousou. E o pássaro que havia de ser? Hibernou.
Eis o Inverno já passado. A Primavera a passear. Já corre de novo o risco.
Revisão: A de Asas. B de Bico. C de Cabeça. D de Desafio...
– Mãe, quem desenhou a linha do tempo? Como posso apagar um mau momento?
– Porque não vais brincar?
– Depois...
Cresce um dia igual aos outros de uma semana habitual. A folha de papel levanta voo finalmente. Tímida, primeiro. Quase um segredo para se guardar. Depois, aberta de par em par.
– Olha, mãe!
O pássaro subiu, subiu até ao sol e desceu até ao mar.
– O que foi que lhe deu? Caiu? Morreu? Não aguentou sonhar?
– Não sei, meu amor. Não sei.
– Que mal fiz eu? A cabeça. O bico. Um corpo de pássaro. Um par de asas. A cauda. Duas patas e pernas na perpendicular. Estava tudo no seu lugar. NÃO QUERO MAIS DESENHAR.
– Não chores. O momento ideal há-de chegar. Olha, amor, lá longe!
– Onde? Onde?
– Ali. No futuro!
Um V de Vontade fugia pelo canto da folha azul sem nuvens, em breve apenas um ponto preto no horizonte. Estava vivo o pássaro afinal!
– Onde está ele agora, mãe?
– Na tua Imaginação.
Estávamos as duas sentadas junto ao mar, eu e a criança que fui. E então desenhei-lhe esta carta na areia e assinei com G de Gratidão.
Figueira da Foz, 1 de Junho
Tema da semana: Escreve uma carta para a criança que foste
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