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Fonte
 
Corvo - Corvus corax

Leonilde, empregada de limpeza, conheceu Raul enquanto regateava o preço de um Poirot e o imaginava na sua cama a folhear o Kamasutra. Ele já não tinha todos os dedos nem ela o juízo completo. O dia amanheceu na forma de um pedido de casamento:

– Casa comigo. Nunca mais terás de comprar um livro.

Um ano depois viviam nos arrabaldes de uma cidade perdida. Nunca faltavam à missa exceptuando se andavam longe, fazendo feiras de velharias. No regresso, depois do almoço habitual no Centro Social Paroquial, sempre visitavam o prior.

– E novidades da terra?

– O Engenheiro Garcia.

– Que descanse em paz.

– Raul, como vai o negócio? Não é fácil viver com esse infortúnio...

– Sr. Padre, não o é. Três dedos chegam para fazer o sinal da cruz. – E sorria. – Esse Engenheiro é o que morava na vivenda azul?

Daí a dias tocavam à porta do falecido para apresentar sentimentos:

– ...e se tiver por aí alguns livros que estejam só a ocupar espaço, nós podemos ajudar.

Certa vez Leonilde trouxe do lixo uma televisão que ainda funcionava. Colocou-a numa pilha de livros. À Sexta nunca mais perdeu o Concurso que dantes via no café. Enciclopédias faziam de banco. Então uma camioneta veio descarregar um frigorífico enorme. Telefonara e acertara na resposta. Mas Leonilde ligou-o e o quadro eléctrico estoirou.

– Serve de estante, – resolveu Raul.

Estavam nisto quando a TV bateu à porta para os transformar em estrelas por um minuto.

A coberto da noite, entre romances, confessou-lhe:

– Assaltei a casa de um ricaço. O meu cúmplice foi preso, os cães perseguiram-me pinhal adentro. Ia perdendo as duas mãos. Safaram-se estes, – disse sorriu, afundando os dedos nos pelos púbicos dela.

Leonilde saiu da cama. Voltou da cozinha e saltou-lhe em cima, colando-lhe uma faca gelada ao pénis:

– Voltas a mentir, capo-te.

Dito isto, cavalgou-o com fúria.

Nem um mês volvido, Raul entrou de rompante na velha casa.

– Onde o guardaste?

Pela porta forçada a pontapé entraram dois colossos que caíram em cima do maneta. Leonilde, atirada contra a parede, desmaiou. Voltou a si e Raul no chão, de olhos temerosos nela:

– O envelope?

– No frigorífico.

– Vai ver. Vasculharam tudo.

Ali estava, no congelador, atrás dos seus livros preferidos. Abriu-o. Era a primeira edição dos sonetos de Antero de Quental. Lembrava-se do célebre roubo ter sido notícia há alguns anos.

– Leonilde! – chamou Raul, tentando levantar-se.

Da cozinha chegou-lhe aos ouvidos um som metálico.

publicado às 15:00


3 comentários

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De imsilva a 17.01.2020 às 15:18

Mataste-me a saudade de um bom texto às 3 horas de sexta-feira. Também tinha encaixado bem.
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De Belinha Fernandes a 18.01.2020 às 14:38

:) Obrigada Isabel! Um bom fim de semana!
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De Anónimo a 26.01.2020 às 11:56

Estimada amiga: há instantes e momentos verdadeiramente geniais e fabulosos. Apareça sempre. Obrigado. Será sempre bem vinda. Com elevado respeito. Pena Gil

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