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Quando a Estrela do seu Sistema finalmente se apagou, o grupo dos Inteligentes ligou a Grande Lux e, limitando o seu alcance, assim dominou uma parcela da população do território sobrevivente. Totalmente dependentes dos Radiantes por mais de dois séculos, os Sombrios revoltaram-se, decididos a conquistar um bem maior que a liberdade. Na história do Reino de Pantona, hoje desaparecido, o trágico episódio nunca foi registado.
A Luz irradiava de uma Torre de muitos quilómetros ligada ao núcleo do Planeta. Os Radiantes abriam as escotilhas negras e raios luminosos estendiam-se como um manto dourado sobre Pantona. Os Sombrios choravam o desolado território assim descoberto pela penumbra. Quando as trovoadas artificiais iluminavam os céus, o arco-íris era uma memória que feria e o verde-musgo uma ténue esperança. A Sombra aprisionara o presente e condenava o futuro. Consumidos pelo desejo de ver tudo, o que estava longe e perto, a revolta contra esta pálida impressão da vida cresceu neles como um fungo.
Um grupo de Rebeldes foi consultar a Consciência do Reino. Ela comunicou que as sortes não eram favoráveis. Pereceriam em vez de renascer das trevas. Guerra, nunca. Negociação era o caminho. Um Emissário partiu e nunca regressou. De novo os Rebeldes a auscultaram sem entender o enigma: “Há luz para além do vermelho ao violeta. A sombra não é nossa inimiga nem a luz nossa aliada.”
O regimento de armaduras negras movia-se a coberto da Fase Escura. Os Radiantes dormiam quando a plataforma energética foi invadida, dominados os poucos operadores ali presentes. Comandaram-lhes que libertassem a Luz sobre o Reino e, quando eles se recusaram, mataram-nos um a um até conseguirem o pretendido. As escotilhas negras subiram lentamente. Selaram as portas da Torre, um grupo de guarda. Outro avançou para o Palácio Radioso e também ali pelo poderio da força e da surpresa conseguiram subjugar as Governanças do Reino.
O assalto fora uma vitória inesperada. Eufóricos, entregaram-se a festejos intoxicantes, observando a Luz crescer com intensidade inaudita. Choravam, deslumbrados com o seu esplendor, não conseguindo desviar o olhar, acometidos por uma cegueira que era o menor dos males. Em Sombria, lentamente, a pele da face e corpos nús que se banhavam na desejada Luz, libertos das habituais máscaras e fatos de protecção contra o álgido quotidiano, começava a borbulhar, a ferver e a cair. Alguns Sombrios refugiavam-se a tempo no subsolo, aguardando o regresso da penumbra com preces nos lábios.
(Ganso das neves - Anser caerulescens)
Srª. Rudolfo. Venho por esta via reclamar do resultado do concurso de recrutamento e selecção para a posição de Pai Natal que teve lugar online. Tomei conhecimento de que fui preterida em virtude do meu sexo. A legislação laboral nacional e internacional está do meu lado. O que a srª. fez foi descaradamente discriminatório! A srª. é um animal que não sabe reconhecer o que é talento. Já me informei junto da Autoridade para as Condições de Trabalho e irá ser notificada em breve. Ser assim tratada por uma rena que foi gozada pelas suas congéneres por ter um nariz diferente só prova que o poder cega mais que o nevoeiro na noite. Já se esqueceu como foi escolhida pelo Pai Natal para ser a 9ª rena do trenó? Por causa da sua luz! Porque assim se evitavam atrasos e acidentes!Também eu sei que posso fazer a diferença como o Pai Natal do séc. XXI: tenho muita luz para oferecer. Prepare-se para provar que não houve preferência de tratamento do candidato seleccionado só porque ele tem uma pila. Isto vai ser o fim da sua história radiosa, sua bola de pelo cruzada com um semáforo de trânsito! Pedirei uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais pela afronta sexista e exigências absurdas: uma fotografia de rosto, outra de corpo inteiro e cinco cartas de recomendação? Horas para conseguir preencher o curriculum vitae no formulário online do site oficial! E os dois dias que passei no Centro Médico para tratar do atestado de robustez física e psicológica? E as longas semanas a estudar geografia mundial, a santa história de S. Nicolau, a vida no árctico, a biologia dos cervídeos? A srª. sabia que a sua espécie se encontra ameaçada de extinção? E a lista interminável de catálogos de brinquedos infantis que tive de decorar? E o curso intensivo obrigatório dos 50 idiomas básicos para ler cartas das crianças e conversar com elas? Mais a formação, paga por mim, em psicologia infantil que tive de frequentar! E depois disto tudo, uma entrevista relâmpago online onde me pergunta qual é o meu maior defeito?! Tenho brevet de voo e disponibilidade para viajar para a Lapónia amanhã. Ainda podemos resolver isto sem recurso ao tribunal. Já não bastava toda uma história de opressão patriarcal, agora, em pleno séc. XXI, inaugurar-se a história da opressão renal é muito má publicidade para o Natal, srª. Rudolfo!
Tema da semana: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo.
(Pica Pau - Dendrocopos major )
Miss Parker, corpo negro, macio ao toque, adornado a ouro, possuía uma beleza intemporal. Fria e distante, ainda assim, HB admirava-a. Ela gabava-se frequentemente da sua rica história. Que descendia de linhagem importante. Quando a rendição alemã foi assinada, estavam lá. Tinham lugar em museus. Hemingway dizia-se inspirado por uma quando escrevera um livro. Privavam com os membros da família real britânica. Eram disputadas por coleccionadores. Já HB tinha um jeito modesto embora ambicioso. As suas origens perdiam-se no tempo, talvez um escriba egípcio que raspara com um estilete num papiro. Não nasci para isto, queria sempre dizer-lhe quando a via olhá-lo com desdém. Mas seria inútil. Ela estava-se nas tintas para ele.
Miss Parker recolhia-se a um estojo de veludo nas horas vagas. Ele dormia em pé, misturado com outros num copo de estanho, numa promiscuidade colorida. Enquanto ela era chamada a escrever cartas de amor, a ele cabia listar as compras da mercearia, fazer maçadoras contas, e, ocasionalmente, esboços em folhas brancas que acabavam no lixo. Durante estes devaneios criativos HB temia pelo seu corpo que via encurtar-se a olhos vistos. Alto e esguio, aproximava-se rapidamente da altura de Miss Parker. Mas nem assim poderia considerar falar-lhe de igual para igual. Também a cada queda o seu coração de grafite se partia um pouco. E mais vezes era aparado. A sua esperança de vida reduzia-se a cada volta. Uma doce tontura sempre anestesiava o corte da lâmina mas não a sensação do tempo a fugir-lhe. Não nasci para isto. Eu sei, eu sinto no mais íntimo da minha negritude, que há algo maior. Todavia, o seu momento não chegava.
Um dia a criança que corria pela casa foi ao escritório e o pai deu-lhe aquele lápis. Foi com ele que começou a ensaiar o a,b,c num caderno de duas linhas. O HB passou a dormir num estojo com a divertida Miss Bic Cristal. Transparente, despretensiosa, ainda que por dentro dela corresse sangue azul, a química entre os dois foi imediata. Viram, orgulhosos, as primeiras palavras escritas pela miúda feliz. Depois, na escola, Miss Bic Cristal escreveu-lhe a primeira redacção e ele fez-lhe uma última ilustração. A professora classificou com Muito Bom.
Hoje o velho estojo escolar, a esferográfica vazia e um lápis HB de 4 cm fazem parte do museu pessoal da minha infância. Da caneta Parker 51, possivelmente adormecida em alguma loja de antiguidades, perdeu-se o rasto.
Tema da semana: Não nasci para isto
Batalha final. Três homens avançam apressados. São interceptados pelo Homem Formiga.
HOMEM FORMIGA
(surpreendido)
Sr. Scorsese?!
SCORSESE
(olhando em volta)
Deve estar a confundir-me com alguém.
HOMEM FORMIGA
E tu, baixote? Quem és? Tens um ar engraçado!
TOMMY
(irritado)
Engraçado? Engraçado como? Como um palhaço? Divirto-te? É?
SCORSESE
Deixa-o, Tommy. Não estamos no Bamboo Lounge.
Homem Formiga
(examinando Bill the Butcher)
Chapéu alto, amigo?! Algum casamento hoje?
BILL THE BUTCHER
Amigo? A que gangue pertences tu? Pelas antigas leis do combate nos juntámos neste chão sagrado para resolver para sempre quem governará os Cinco Pontos.
HOMEM FORMIGA
Cinco Pontos? As Jóias do Infinito, queres tu dizer. Não são cinco, idiota, são seis.
BILL THE BUTCHER
(irado)
Idiota és tu. Cada um dos Cinco Pontos é um dedo. Se fechar a minha mão ela torna-se um punho. E se me apetecer, posso dar-te um murro.
Scorsese
(Interpondo-se entre ambos)
Pára, Butcher. Temos mais que fazer. Vamos.
HOMEM FORMIGA
(para Scorsese)
Gostava mesmo de um autógrafo seu mas estou atrasado. Cuide-se!
Levanta voo.
Os três caminham de novo.Scorsese guia-os.
TOMMY
Ainda não entendi que guerra é esta...
SCORSESE
Uma que temos de vencer. Trouxeste-o?
TOMMY
Sim, está no meu bolso.
Bate com a mão direita no peito.
SCORSESE
(para Butcher)
E tu?
Ergue a mão que segura um cutelo.
SCORSESE
Isto é um parque de diversões, Tommy.
TOMMY
De que falas?
SCORSESE
Deste universo cinematográfico em que nos encontramos. Cheira a estagnação. Não sentes?
TOMMY
Chefe, eu estou morto. Não sinto lá grande coisa.
SCORSESE
A arte está morta. Mas nós vamos resolver isso.
Interrompem a marcha. Scorsese aponta Thanos e o Homem de Ferro que lutam.
SCORSESE
São eles.
TOMMY
Chefe, a quem aplico a solução que dei ao Morrie? Ao grandalhão?
SCORSESE
Ao “baixote”.
Tommy sorri.
O Homem de Ferro está de joelhos no solo. Tommy aproxima-se por trás. Agarra-o pela testa.Espeta-lha o picador de gelo na nuca. Ele cai por terra.
SCORSESE
(para Bill)
Corta, Butcher.
Bill atira o cutelo ao ar. Ele dá voltas e cai,cortando o braço do Homem de Ferro.
Scorsese agarra o antebraço com as Jóias do Infinito.Ergue-o acima da cabeça.
SCORSESE
Hoje o reinado da Marvel será apagado para sempre. Em nome da arte.
Desaparece.
SCORSESE transpõe a 4ª parede.
SCORSESE
(para o público)
Thanos sabia: enquanto existirem os que se lembram como foi, não aceitaremos o que poderá ser.
Estala os dedos.
CORTA.
Tema da semana: Reescreve o final de um filme
Filme escolhido: Endgame (2019), trailer, aqui
As personagens dos filmes de Scorsese:
Tommy DeVitto em Goodfellas
Bill the Butcher em Gangues de Nova Iorque
Martin Scorsese: “I don’t see them. I tried, you know? But that’s not cinema. Honestly, the closest I can think of them, as well made as they are, with actors doing the best they can under the circumstances, is theme parks. It isn’t the cinema of human beings trying to convey emotional, psychological experiences to another human being.”
Entrevista na Empire Magazine, Outubro 2019
Na bagageira viajava uma televisão acabada de comprar na Black Friday. A casa da mãe fica no bairro dos pescadores. Raul, parado nos semáforos, foi assaltado por histórias antigas que ela contava. Ele era filho do comandante Jota “Tubarão”, entregue não por uma cegonha mas por um albatroz. E a coruja que habitava a casa modesta e que caçava ratos melhor que um gato, enquanto ele dormia? Nunca a viu e não acreditava. Hoje, dia de aniversário, a mãe, vestida de negro desde que o mocho piara, sinal de número parnão no céu, assim antevendo a sentença do naufrágio, esperava-o acompanhada do gato que condizia com seu eterno destino.
Tinham combinado uma sopa rica de peixe. A importância do jantar festivo acompanhado por uma garrafa de vinho foi disputada por um documentário sobre aves de rapina na nova TV. Raul bebeu para estancar a náusea dos abutres a limpar carcaças. Não tinha estômago para aquilo. A mãe parecia imune ao nojo. Alimentava um fascínio por rapaces. Tarde, à porta da escuridão, ela perguntou:
– Quando voltas, filho? Daqui a um ano?
Raul iludiu a resposta e acelerou noite dentro.
A criança dormia quando Raul deslizou pelo corredor. A mulher, aconchegada na cama, perguntou por D. Adelina. Que estava bem, disse ele. O gato engordara. E foi ao duche.
Bom dia. Permitam que me apresente: Chernobyl, peixe kinguio japonês. Ganhei o meu nome quando desenvolvi uma enorme bola na cabeça, um tumor. Até aí era simplesmente tratado por “Peixinho”. Hoje, com 13 anos, e 20 cm de comprimento, seria ridículo. Todavia, a única radioactividade a que fui exposto é a música clássica da Antena 2 que o namorado da mulher com quem partilho apartamento põe a tocar ao sábado, mal chega a casa. Nesse dia, a rotina altera-se radicalmente. A voz dele ecoa pelo ar e faz tremer as paredes de vidro do meu aquário. Um vero Parvarotti e um beijoqueiro. A primeira vez que o vi beijá-la pensei que ele a fosse matar. Na loja do shopping, há muito tempo, conheci um peixe-beijador. Guardava respeitosa distância, embora ele fosse agressivo apenas para com os da sua espécie. Afinal o homem é inofensivo, aquilo não era briga, antes preliminar do acasalamento. (Nunca os vi a procriar, nem quero.)
À hora do almoço, ele é um mãos largas com os grânulos, diferente da mulher, sempre com a mania da dieta, uma unhas de fome. Espero em vão por coração de boi, cozido e esmigalhadinho com ervilhas semi-cozidas, levemente amassadas! Anseio por artémias, larvas de mosquito, moscas de fruta! Mas só me dão enlatados industriais. O pior é vê-los à mesa a devorar os meus semelhantes. Inicialmente, atemorizado, até julguei que me destinavam ao estômago. Vi douradas, robalos, sardinhas, e muitos outros, a chegarem ali a fumegar em bandejas metálicas! Sacrilégio! No meu país natal são mais civilizados: comem-nos crus, e até vivos, bem frescos, como deve ser! Não sei que barbárie é esta, mas a cena repete-se duas vezes por dia. Ao jantar até acendem velas na mesa como se tudo aquilo fosse um sacrifício aos deuses.
Chega a noite, novo suplício. Sentam-se abraçados no sofá a ver filmes de terror. Lá por não ter pálpebras, não quer dizer que não durma. De sono leve, a cada grito sobressalto-me, dou meia volta e provoco um tsunami. Ignoram-me. Cada vez se agarram mais um ao outro: deve ser o medo, não? E voltam aos beijos antes de se irem embora dali, apressados, sem sequer saber como a história acaba. A TV fica acesa, a luz ligada. Que desperdício. Resto eu. E que tédio: morreram todos novamente! Que filmes mais previsíveis. Humanos! E dizem-se eles os seres mais evoluídos do planeta. Pff!
(Fuselo - Limosa Lapponica)
“Já chegámos? Já chegámos?” O mundo unido numa redonda pergunta. 384.400 km. A raça humana embarcara, temerária, naquele Saturno esguio. A Águia aterraria em quatro dias, periclitante, no solo lunar.
Alheia à História que se fazia naquela noite, eu viajava no berço dos meus sonhos enquanto na imaginação mundial acordava um universo de possibilidades. Na saleta, os meus pais controlavam o sono a poder de cafés e entusiasmados cigarros, ouvidos atentos à Emissora Nacional, olhos colados na TV a preto e branco. Aproximavam-se as quatro da manhã do dia 21 de Julho de 1969, era ainda a noite de 20 nos Estados Unidos, quando demos um pequeno passo no regolito lunar e nos lançamos no salto gigantesco que um dia, ainda longe, há-de resgatar a humanidade da sua extinção. Fomos em paz e em nome de todos. O mundo unido numa redonda conquista. Nunca fôramos tão grandes.
O educador Charles Morton escreveu no séc. XVII um tratado sobre a migração das aves no qual defendeu que no Inverno elas voavam até à Lua, regressando depois na Primavera. Estimou que a distância a percorrer fosse de 179,712 milhas e que elas demorariam 60 dias a chegar lá a 125 milhas por hora. Se desapareciam da paisagem, para onde poderiam elas ir senão para a Lua?
Vi um fuselo na praia a comer avidamente. Está de passagem. As aves migram desde tempos ancestrais para fugir de ameaças à sua sobrevivência. Regressam ao local de partida, na estação seguinte, para acasalar e cuidar das crias. Os fuselos dispensam qualquer foguetão. Preparam-se para viajar acumulando enormes reservas de gordura: é o combustível. Mais de metade do seu peso é gordura. À medida que engordam, os músculos peitorais e as patas também crescem. Batem as asas durante a maior parte da viagem. Além da força muscular, os fuselos também tiram partido do vento embora não planem. Orientam-se pela sua misteriosa “bússola interna”:tecnologia de ponta. É bem possível que dormitem enquanto voam, quem sabe se não sonharão com uma viagem à Lua!
Em 2007, um fuselo fêmea, uma ave com apenas 40 cm de comprimento e 80 de envergadura, percorreu 11.570 km, um voo de 8 dias, sem escalas. Partiu de um estuário no Alasca e alcançou a costa da Nova Zelândia, uma distância equivalente a ¼ da circunferência da Terra.
Da próxima vez que olharmos a Lua, se nos sentirmos grandes, lembremo-nos do fuselo.
Tema da semana: Já chegámos? Já chegámos?
(Gaivota - Larus fuscus)
No Verão anterior, Simão, 14 anos bem encorpados, acompanhara a primita Lúcia ao Casino para receber um jogo da Majora que ela tinha ganho no concurso. Neste, apostara com ela que ficaria em 1º lugar. Nunca supus ser a sereia que um dia o mar depositara nos braços daquele beirão moreno e de olhos pestanudos, quando, de férias na praia da Claridade, anos 60, as nossas famílias, a banhos, se conheceram. Mais novo, marinheiro de água doce no amor, a voz embargava-se-lhe quando me dirigia a breve palavra, o que eu tomava por juvenil timidez.
E foi assim que acordei nua e só numa ilha deserta sem me lembrar de nada. Simão, ajoelhado, transpirava ao sol, a cabeça protegida por um boné, o tronco nu curvado. Movimentando os braços e mãos num afã amoroso, penteava os cabelos longos com os dedos, enfeitava-me o peito de conchas e búzios, acariciando cada curva com enlevo. O júri avisou bem alto o termo do tempo. Ele sentou-se junto a mim, deleitado. Quis erguer a mão para festejar os seus caracóis negros e foi quase trágico. O antebraço desfez-se no ar. Sobravam breves minutos para Simão recompor a construção de areia.
Uma moldura humana rodeava o recinto, pais, mães e curiosos, ansiando a coroação dos pequenos grandes artistas. O júri atravessou vagarosamente o areal construindo castelos no ar com palavras de apreciação. Porém, à vista daquela ousada nudez, apenas questionaram:
– Nº 23, menino Simão Tavares, “Mulher nua numa ilha deserta”, certo?
Não, não. Aquela era Isabel, a sua paixão, que, filas adiante, apoiava a prima Lúcia, Nº 7. Chamara-a insistentemente com o olhar mas ela apenas se chegou ali já o concurso acabado:
– Tenho tanta pena que não tenhas ganho. Já pensaste um dia ser escultor?
As palavras dela souberam-lhe a tão pouco que foi dar um mergulho. Deixou a água do mar temperar-lhe o corpo e o espírito por longa hora. Quando voltou a multidão tinha dispersado e ele deitou-se ao lado da solitária escultura. Já muito tarde, o sol anunciando a retirada, o pai veio por ele, mas Simão recusou abandonar a sua mulher de sonho. Adormeceu ali. Devagar uma onda aproximou-se, e depois outra, e, sem remorsos, arrancaram-lhe aquele amor de areia dos braços. Os seus pensamentos levaram-no até casa, onde chegou, com fome e a tremer de frio, mas de coração lavado. Aquilo que o mar dá, o mar leva.
Tema da semana: Acordaste nua, sem te recordares de nada, numa ilha deserta
(Poupa - Upupa epops)
Estávamos as duas sentadas frente ao mar, eu e a folha branca de papel. Ansiosa sem saber. Macia. Pura. Original. À espera do risco que lhe ia acontecer.
Era uma vez uma maçã talvez. E um traço. E outro. Um telhado? E um ovo deitado. Dois gomos de laranja, mais um triângulo bem afiado. Duas linhas de pé.
– O que é?
– Um pássaro.
– E voa?
– É pequeno ainda!
– Deixa-o tentar...
– E se cai da folha e fica magoado? E se tomba ao chão e deixa de cantar? E se morre de desgosto por não saber voar?
– Amanhã, então.
– Ajudas-me?
–Tens de ser tu.
Grande é a vontade de voar! Toca a recomeçar. Cabeça e coração alinhados no lugar. Mas aquela mão desobediente, sem mãe nem pai nem Deus que a oriente. Uma. Duas. Três, toca a riscar. Ai Mão-Cega, ai que jogo mais difícil de jogar! Quatro, cinco, seis, vai de apagar. Rasga-se a folha infernal. Voa a bola de papel amassado em vez. Faz ninho do cesto onde pousou. E o pássaro que havia de ser? Hibernou.
Eis o Inverno já passado. A Primavera a passear. Já corre de novo o risco.
Revisão: A de Asas. B de Bico. C de Cabeça. D de Desafio...
– Mãe, quem desenhou a linha do tempo? Como posso apagar um mau momento?
– Porque não vais brincar?
– Depois...
Cresce um dia igual aos outros de uma semana habitual. A folha de papel levanta voo finalmente. Tímida, primeiro. Quase um segredo para se guardar. Depois, aberta de par em par.
– Olha, mãe!
O pássaro subiu, subiu até ao sol e desceu até ao mar.
– O que foi que lhe deu? Caiu? Morreu? Não aguentou sonhar?
– Não sei, meu amor. Não sei.
– Que mal fiz eu? A cabeça. O bico. Um corpo de pássaro. Um par de asas. A cauda. Duas patas e pernas na perpendicular. Estava tudo no seu lugar. NÃO QUERO MAIS DESENHAR.
– Não chores. O momento ideal há-de chegar. Olha, amor, lá longe!
– Onde? Onde?
– Ali. No futuro!
Um V de Vontade fugia pelo canto da folha azul sem nuvens, em breve apenas um ponto preto no horizonte. Estava vivo o pássaro afinal!
– Onde está ele agora, mãe?
– Na tua Imaginação.
Estávamos as duas sentadas junto ao mar, eu e a criança que fui. E então desenhei-lhe esta carta na areia e assinei com G de Gratidão.
Figueira da Foz, 1 de Junho
Tema da semana: Escreve uma carta para a criança que foste
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